Vou-me embora desta casa!
Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?(Existe: é ser pai e brigar com o filho de quatro anos. Mas isto a criança só descobre muitos anos depois.)
Pra um garoto de quatro anos, brigar com o pai,ou com mãe, significa romper com o mundo . Uma ruptura, aliás, freqüente, porque há poucas coisas que um guri goste mais de fazer do que brigar. Ele briga porque quer comer e porque não quer comer; porque quer se vestir ou porque não quer se vestir; e porque não quer tomar banho, não quer dormir, não quer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão. E porque quer uma lancha com pilhas, e uma bicicleta, e uma nave espacial __de verdade. Todas estas coisas geram bate boca, ao final do qual o garoto diz, ultrajado:
___ Aha, é? Pois então...
Pois então o que? Um país pode ameaçar outro com mísseis, ou com marines, ou com bloqueio: um adulto diz que vai quebrar a cara do inimigo; mas um garoto, pode ameaçar com o que? Como o único trunfo que ele tem
___ Eu vou-me embora desta casa!
Ao que, invariavelmente, os pais respondem: vai, vai de uma vez. Ué, mas não seria o caso de eles suplicarem, não meu filho, não vai, não abandona teus velhos pais? Meio incrédulo, o guri repete:
___ Olha que eu vou, hein?Vai, é a dura resposta. E aí o menino não tem outro jeito: para salvar a honra (e como tem honra, os garotos de quatro anos) ele de partir. Começa arrumando a mala: numa sacola de plástico, ele coloca os objetos mais necessários: um revólver de plástico, os homenzinhos do Play móbil (aos quatro anos, o kit de sobrevivência é notavelmente restrito).
Enquanto isso, os pais estão jantando, ou vendo TV, aparentemente indiferentes ao grande passo que vai ser dado. O que só reforça a disposição do filho pródigo em potencial: esses aí não merecem, eu vou-me embora mesmo.
Mas, para onde? Para onde, José? Manuel Bandeira podia ir para Passagarda, onde era amigo do rei; aos quatro anos, contudo, a relação com a realeza é muito remota. O guri abre a porte da rua (essas coisas são mais dramáticas em casas do que em apartamentos); olha para fora: está escuro, esta frio, chove. Ele hesita; está agora em território de ninguém, tão diminuto quanto o é a sua independência. Ir ou não ir? Nem Hamlet viveu dilema tão cruel. Lá dentro vem um grito:
___ Fecha essa porta que está frio!
Esta é a linha dura(pai ou mãe). Mas sempre há um mediado__pai ou mãe__ que negocia um recuo honroso:
___ Está bem, vem para dentro. Vamos esquecer tudo!
O garoto resiste, com toda a bravuraque ainda lhe resta. Por fim, ele volta, mas sob condições: quando o pai for ao Centro, ele trará um trem elétrico, desde de que não seja muito caro, naturalmente. A paz emfim alcançada, o garoto volta para dentro. até a proxima briga.
Quando, então:
___ Eu vou -me embora desta casa!
Moacyr Scliar (2ª capítulo de su livro Um país chamado infancia)
Thamara Barão de Lima